Carta do Cão Monge à Galinha Piri-Piri
Escrevo-lhe pedindo desculpa por só agora, passados tantos anos, poder demonstrar a minha profunda admiração por si e pelas suas companheiras de luta, a chiqueza em galinha, Noz-Moscada e a racionalidade em galinha, Pimentão.
O relato da sua extraordinária aventura chegou-me, com muitos anos
de atraso, e por mero acidente, quando tentava juntar umas migalhas de pão seco
para distribuir a uma família de pobres ratitos num velho jornal, quando me
deparo precisamente com um extenso artigo sobre a sua aventura. Penso que sabe
exatamente a que jornal e a que artigo me refiro. Como poderá esquecer?
Era o famoso periódico
Correio da Noite e o artigo era do excêntrico Sr. Tucano, que, com a sua
escrita perfumada e melosa, dirigia-se a si, senhora e mui respeitável detetive,
como “Minha Ambrosia”, “Quindim doce”, “Cocada branquinha”, “Cucazinha de
farofa crocante”, “Cupuaçu de creme de açaí”.
O incauto leitor pensará que ele estaria a chamar-lhe nomes que
fariam tremer os Santos, mas como o meu querido mestre Frade viajou em missão
por todo o mundo levando-me consigo, sei muito bem que se tratam de doces
brasileiros.
Um jornal deve ser sempre imparcial e informativo, por mais que o
Sr. Tucano esteja por si enamorado e com as melhores das intenções. O Sr.
Tucano deveria tratar o assunto com a maior das seriedades. Ainda mais neste
tempo, pois muito se lê, mas poucos são aqueles que compreendem. Nunca a
verdade foi tão banalizada como mentira, e a mentira exaltada como verdade.
No meio do
artigo aproveitei a verdade, investiguei e consultei outros jornais, e um
delicioso relato romantizado, escrito em 2012, por uma famosa cronista sua. Só
faltará um filme, como acontece hoje com quase todos os livros.
A sua ação importante ajudou a salvar a memória do fundador da
Vila Sem Nome, o Ratinho da Serra. Conheci um dos seus descendentes que vivia
num convento budista nos Himalaias, que ainda falava um português correto.
Depois de acumular tanta riqueza, estava a curar-se da dependência do queijo,
depois de um litigioso divórcio.
Nisto tudo,
ainda não tive oportunidade de me apresentar. O meu mestre chamou-me Snoopy, em
honra ao verdadeiro Snoopy da banda desenhada de Charles M. Chultz, por ter o
pelo preto e branco. Não sou de raça, nem tenho pedigree, mas tenho as vacinas
em dia. Que importa a raça, o que vale no fim de contas é a forma como vivemos
e o que de bom fizemos nesta vida.
Fui adotado pelo meu mestre quando este visitara a Ilha da
Madeira. Nunca terá ouvido falar de mim, contudo eu e o meu mestre vivemos mil
e uma aventuras.
E que aventuras! Visitei os conventos budistas nos ermos cumes dos
Himalaias, visitamos os desertos do norte de África, do Sahaara ao Egipto, à
procura dos velhos locais onde os monges encontravam Deus nas estrelas. Visitei
Roma, tivemos até uma audiência com o Papa que me fez uma festinha na orelha
direita, que não lambi durante mais de 2 anos, até que a veterinária reparou
num grande carrapato ali alojado.
Visitei inúmeros conventos, segui os passos dos santos, visitando
os locais sagrados e algumas vezes, até, os locais mais misteriosos e mágicos
que se possa imaginar!
Enfim, fui um monge cão errante e peregrino! Tive uma vida plena,
e eu e o meu mestre desvendamos muitos mistérios.
Hoje, vivo uma vida discreta e recatada, dedicada à contemplação e
à meditação num convento franciscano com o meu mestre. Os animais das
redondezas chamam-me “cão monge” ou “guardião do convento.”
Contudo,
sempre que posso, saio do convento para auxiliar os meus irmãos em
dificuldades. Toda a espécie de animal é meu irmão, pois o Amor de Deus
manifesta-se, também, como um ato de compaixão para com o outro, como me
ensinou o meu mestre, ao longo das nossas aventuras pelo mundo.
A sua aventura, cara detetive Piri-Piri, lembrou-me os meus velhos
tempos de aventura. A forma engenhosa com que descobriu onde e quem tinha
roubado a estátua do saudoso Ratinho Queijo da Serra. Admito, há muito que não
vibrava tanto com um bom caso policial.
Sei que me
dirijo a si em tempos difíceis. Mas todas as ocasiões são boas para escrever
estas palavras de amizade e esperança.
Há muito que observo os irmãos que fugiram do mundo para estarem
em quarentena consigo mesmos. Ficaria espantada se lhe dissesse que continuam a
sondar mistérios mais profundos e difíceis dentro de cada um deles, no mais penetrante
silêncio do coração e da alma.
Tenho também animais que estão
comigo no convento em retiro e vivendo todos pacificamente. Todos somos irmãos.
Embora cada um tenha o seu passado com coisas boas e más.
Até nestes
momentos mais difíceis há que aproveitar este tempo que nos é dado para também
sonhar e semear em nós a calma que a vida moderna nos tirava com todas as
expectativas e desilusões. Esta é uma oportunidade, tudo é uma oportunidade
para conhecermos a luz que há em nós.
Depois disto, o mundo será o mundo, as coisas retornarão à
normalidade, por mais difícil que ela seja. Há que seguir em frente. Mas teremos
de seguir o exemplo das alegres borboletas, depois de enclausuradas no casulo,
nascem para o mundo fortes na fragilidade e curiosas e felizes para a vida que
as espera de braços abertos, amando cada flor pelo caminho.
Despeço-me, desta longa missiva, com admiração, à espera de ler
novas aventuras suas e das suas amigas, pela pena da talentosa cronista e do ilustre
ilustrador!
Pax Vobis.
Snoopy.



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